quinta-feira, 15 de julho de 2010

Ousemos, a sermos preguiçosos




Essa semana estava lendo em um tópico, se era certo ou não utilizar textos premiados em outros concursos. Para o meu espanto, grande parte disse que fazia isso, desde que o edital não previsse o ineditismo total. Há poucas semanas, participei de um concurso que previa, escritores desconhecidos e material inédito, entre os contemplados com a premiação, dois deles haviam sido postados em suas respectivas páginas pessoais, o mesmo material encaminhado ao concurso, sendo que um datava 2007 e outro, 2009.

Uns acham que ineditismo é algo que não foi publicado; outros acreditam que o fato de tornar comum o material (internet ou comissão julgadora) já deixa de ser inédito.

Outro ponto que gostaria de levantar baseia-se na passagem abaixo de Roland Barthes (Ousemos ser preguiçosos):

“Mas acredito realmente que, para escrever, não se deve ser preguiçoso, e é justamente uma das dificuldades de escrever. Escrever é um gozo, mas ao mesmo tempo um gozo difícil porque deve atravessar zonas de trabalho muito duras, com os riscos que isso comporta: vontades a ameaças de preguiça, tentações de desistir, cansaços, revoltas.”

Imagine se ao invés de sua vasta obra, Julio Cortázar, apresentasse aos leitores somente A casa tomada; por mais magnífico que possa ser esse conto, Cortázar ao se reduzir a ele e/ou alguns poucos relâmpagos geniais, seria apenas um escritor argentino, e não Julio Cortázar. A lista é enorme, Bolaño (Fotos); Clarice Lispector (Mineirinho); Vila-Matas (As noites da íris negra); Ramón Ribeyro (Ao pé da escarpa); Raimundo Carrero (Fumava formiga com piteira); Marcílio França Castro (Os amantes de Changji); Correia de Brito (Brincar com veneno); Maurício de Almeida (Duelo); Marçal Aquino (A face esquerda), entre tantos outros. Há aqueles, como Raduan Nassar... ops! isso é outra história. A discussão é longa.

No mais, é importante o desafio de criar, recriar, escrever e reescrever dezenas de vezes a mesma história, aperfeiçoando-a a (im)perfeita condução dos nossos atos (dia a dia), amadurecendo em alguns aspectos, regredindo em outros. Mas nunca deixando de viver, aprender, errar e se alguém nos permitir, ensinar. Se não tivermos coragem de encarar os desafios, de sermos honestos conosco; isso lembra: “se estivermos cansados, da verdade, do amor” (Contos da Lua Vaga – Beto Guedes), nada terá sentido, ou tudo terá um falso sentido. Se não houver verdade, não poderemos ser escritores, sendo assim, não poderemos ser ninguém. Apenas uma sombra repetitiva de pequenos momentos de lucidez; ou será de loucura!?




BARTHES, Roland. O grão da voz. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.481.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Documentário: Dignidade: eu vivo esse sonho (Kalunga) Riachão-GO

Dona Procópia (lenço vermelho) - Matriarca dos Kalungas
Trecho da fala de Dona Procópia:


“Tuda as coisa de nós era no lombo do burro ou a pé, pra ir na cidade. Só ia os home, as muié não tinha condição de ir.”




Documentário - Dignidade: eu vivo esse sonho - A chegada do desenvolvimento na comunidade Kalunga Riachão.
Roteiro e Direção: Dídimon Guedes e Orlando Campos
Cinegrafista: Tyrone Vmaker

Conto: A traição de Darlene

Eu não tinha dúvidas. Darlene estava me traindo. Como não? Quer a prova da traição dela? Pois bem, te darei várias. Se julgar que estou errado. Condene-me. Faça o que bem entender. Se quiser, acabe com nossa amizade de quarenta anos. Aliás, somos amigos desde a infância. É sua obrigação me ouvir, sem me condenar. Lembra quando você decidiu se separar de Regina? Pois é, disse alguma coisa que reprovasse a sua atitude? Então? Senta aí e me ouve. Se possível diga alguma palavra de consolo. Dizem que: “para o corno, todo o castigo é pouco”. Só que meu castigo foi maior. Não porque merecesse. Sempre fui um bom marido. Nunca deixei faltar nada dentro de casa. Em todos esses anos, fui um bom amante. Tenho meus deslizes, mas nunca deixei de amá-la.

Mais ou menos há um ano as coisas mudaram. Darlene não me procurava mais. Eu não me dei conta. Ela correspondia aos meus carinhos. Só percebi mesmo, quando ela mudou seus hábitos: trocar de roupa no banheiro e a tomar banho com a porta fechada. Na hora do amor, subia apenas a camisola, sem que eu pudesse contemplar seu corpo nu. Talvez fosse preocupação da idade, a gente envelhece e o tempo pesa sobre nossos corpos, quiçá, nossas mentes.

Desde então, comecei a dar-lhe pequenas lembracinhas a fim de dizer, nas entrelinhas, que o meu amor por ela era vivo. Da parte dela, nada mudara. Sempre cabisbaixa. Pelos cantos da casa. Em silêncio. Atendo-se apenas as tarefas da casa e o cuidado com as crianças. Pouco aberta ao diálogo.

“Hei! Presta atenção no que estou te contando...”

Ouça. Na impossibilidade dela se abrir comigo. Passei a segui-la. Todas as terças ela ia até a Avenida Independência, você sabe muito bem onde é. Seu escritório fica na 1.310. Pois bem, ela descia na 604 e entrava naquele prédio verde. Sabe qual é, né? Só saia de lá à tardinha.

Nas quintas, ainda pela manhã, ia até a Rua Catalão, próximo do cemitério velho, entrava numa casa bem humilde. Mas era rapidinho. Saia às pressas para chegar em casa e ter tempo para preparar o almoço. Rondei os locais e nada descobri.

Um dia tomei coragem, engoli o orgulho e perguntei-a de bate-e-pronto “você está me traindo?”. Com o olhar baixo, a voz engasgada, as mãos trêmulas, disse-me que não.

Que nunca teve qualquer outro homem além de mim. Ressentindo por não conseguir que ela me confessasse, senti vontade de espancá-la. De uma pessoa que jurei eterno amor, vê-la assim, tão culpada, tão submissa em sua consciência, me destruía.

Ela me confessou que seria em vão qualquer agressão “se você encostar às mãos em mim. Te perdoarei. Te perdoarei por ser homem.”. Ela foi longe demais. Meu Deus! Meu Deus! Aquilo por si já era uma confissão. Aliás, esse caso deveria ser muito importante para ela. Aguentar a dor de uma saraivada de pancadas em razão de esconder o nome do amante, era demais.

Depois disso, ela passou a não sair mais de casa. Os olhares dos vizinhos condenavam-me. Acusavam-me. No mais, chacoteavam-me. Com certeza ela aproveitava que as crianças, já crescidas, fossem ao colégio para levar o canalha para dentro de casa. Uma mulher que não só me traiu com outro, mas traiu a minha confiança; violou o nosso lar.

Ontem à noite foi o momento da misericórdia, da discórdia, da inglória... Disse a ela que ia ficar até mais tarde no trabalho. Nesse dia, ela pediu que a irmã ficasse com as crianças depois do colégio. Ia pegar os dois em flagrante.

Saí no meu horário habitual. Peguei a condução. Ao chegar no portão. Vi as luzes apagadas. Apenas um feixe de luz – meia luz – vinda do nosso quarto. Não acredito que ela esteja fazendo isso em nosso quarto. Em nossa cama. Em nosso lar. Percebo que nada mais é nosso.

Arrebentei a porta da frente. Invadi os corredores que me levavam até o quarto. O suor pingava no chão. O pulsar do meu coração batia tão forte quanto os meus passos. A porta do nosso quarto estava entreaberta, empurrei-a com muita força. Força da qual temia não ter ao olhar uma cena daquelas envolvendo a minha mulher; força da qual temia não ter ao enfrentar o vagabundo que surgiu para desgraçar a minha família. Desejaria mesmo era que a porta o atingisse em cheio, arrancando-lhe a cabeça. Uma morte, em nome da minha honra, pesaria menos que a humilhação de ser um corno.

Vi Darlene nua – de costas para mim – olhando-se no espelho. Busquei-o por todos os cantos do quarto. Não vi ninguém. Rabiei em baixo da cama. Nada! Absolutamente nada! Ninguém! “Cadê?” – perguntei inconformado. Quando ela se virou para mim. Havia hematomas espalhados por todo o corpo. Quem haveria de ter feito aquilo? Aos prantos, de joelhos sobre a cama, me disse que era câncer e por isso, sentia vergonha de si. Desde então, não desgrudei mais de Darlene. Como pude desconfiar do seu amor. Só guardo comigo a convicção de que, apesar de tudo, ela me traiu em nossa cumplicidade, por nunca ter me dito à verdade.

Conto escrito para o concurso Todos Nós da Geração Editorial

Conto: Os sinais que me levam até você

Nuvem sobre o Largo da Carioca - Márcia Foletto




É final de tarde. Faz frio. Não consigo parar de bocejar. A chuva forte varre tudo o que encontrar pela frente. Cobre os meus pés. Não tenho nem coragem para lavá-los. Procuro abrigo embaixo de uma marquise. De repente, a dona da banca de jornal enfrenta a tempestade sem nenhuma proteção “ela é louca?!” – e olha fixamente para mim. Volta-se para o céu. Imensos pingos cobrem-lhe a visão. Completamente ensopada, a mulher volta a me olhar e, de súbito, entra na banca sem falar nada.


Ela me olhou como se me culpasse de algo – “era só o que me faltava.” – não bastasse o preconceito de todos os dias, e agora, mais essa. Meu pai sempre dizia: “quem tem sempre acha que está sendo roubado.”.



Faça chuva ou faça sol, não tem um dia que Dona Zefa não pare no meio da praça e olhe para o céu. Como num ritual, ela tira do jaleco um papel todo amassado. Não consigo ver o que é. Ela o aproxima do rosto e chora. Volta a olhar para cima; parece desolada por não encontrar nada – e sabe-se lá o que ela deseja encontrar. Agora ela olha para o chão. Cabisbaixa, volta para dentro da banca, antes, porém, me procura; fica alguns segundos e não diz nada. Quer falar alguma coisa, mas se cala.



“Que diabos ela quer comigo?”



Tenho curiosidade em saber o que ela queria me falar, mas confesso, temo o rigor de suas palavras. Só quem já as ouviu, sabem o quanto são pesadas. Dizem até que ela é filha de ciganos. Eu não acredito nessas coisas, mas, se ela é capaz de ler o passado e revelar os acontecimentos futuros, eu é que não vou arriscar “o povo fala demais, fala por falar.”.



Tristes dias, esses, aqui na Carioca. Não tem mais ninguém para compartilhar a alegria dantes vivida por todos. Não ficou ninguém. Eu permaneci por pirraça. Não poderia largar; aqui é o meu lugar... minhas avenidas, becos e a praça. Aqui não tem mais emprego “triste realidade do país”. Tiraram-nos tudo. A alegria dos camelôs e dos artistas. Dos muitos que fizeram daqui palco, lugar de reivindicações, muito trabalho e amor.



Não sou desempregado, não! Pensa que fui mendigo da vida toda? Estão enganados. Sempre trabalhei, claro, onde havia emprego. Mas eu gostava mesmo era de fazer um bico. Sou mestre no assunto. Varrer, carregar, lavar. A arte de prosear, mas não para jogar conversa fora, e sim, a arte de escrever, principalmente poemas. Só que me abandonei na Carioca, pois sabia que ela nunca iria me abandonar. Larguei toda aquela vida e ficaram apenas lembranças “Saudades de Anselmo e Darlene”. A separação. A cólera que entorpeceu a minha alma, fazendo-me incorporar essa nova vida.



Não acredito! Lá vem aquela velha novamente. Meu saco! Mal amanhece e ela faz tudo de novo. O que ela quer afinal. Vou para o outro lado da praça. Assim ela não me acha. Evito ao máximo aquele olhar de cobra em cima de mim. Lascou! Não é que ela me encontrou. Mesmo aqui atrás da árvore deitada. Parece até que ela tem olhos na nuca. Tô começando a achar que ela é uma bruxa. Cruz em Credo!



Uma imensa nuvem se forma entre os prédios. Nunca vi uma coisa assim. De tão baixa, parece que imensas mãos se agarram entre as paredes. Todos estão hipnotizados com aquela imagem, inclusive Dona Zefa. Parece até que se comunicam. A cada movimento da velha a nuvem se movimenta em sincronia.



Ao tirar o mesmo papel do bolso, deixa-o cair no chão. Ao olhar para o chão, pensei que ela fosse pegá-lo, só que ela começa a caminhar. Segue o desenho das pedras, como se as ondulações performáticas a conduzissem a algum lugar. Meu instinto pede para segui-la. Mas antes, pego o papel no chão. É uma foto antiga – P&B – nela está uma jovem. No verso, está escrito:




A nuvem que me leva à rua


Não mostra nada


Sigo apenas as ondas na calçada


Deixo-me levar


Por entre às águas... até me calar no mar.... Glorinha.





A foto foi tirada de cima para baixo. A posição era de algum desses prédios e a moça, estava plantada na mesma posição na qual me encontro. Procuro o prédio de onde havia sido registrada. Me distrai com aquilo e perdi de vista Dona Zefa.



Dá para ver, apenas o rastro da nuvem, em espiral, se dissipando no ar. Tenho a crença de que se a seguir, a encontrarei. Só consegui avistá-la próximo ao Convento de Santo Antônio. Ao me aproximar dela, percebi que estava de joelhos escavando o chão com as mãos. Ela sentiu a minha presença. Por um instante, quis parar, mas prosseguiu, enfiando com toda a força as unhas na terra. Não tive coragem de impedi-la; falar com ela, menos ainda. A única coisa que pensei e foi feita ao jogar a foto no pequeno buraco escavado em sua frente a interrompeu por um instante. Dona Zefa apanhou a foto contemplada por uma alegria vertiginosa. Olhou novamente para o céu. Acenou para a nuvem em despedida. Virou para mim com os olhos cheios de lágrimas e pela primeira vez, me dirigiu a palavra. O pouco que disse foi o agradecimento por tê-la ajudado a encontrar sua filha. No mais, eu a agradeci por me conceder a oportunidade de ser o narrador dessa historia. Agora posso voltar a minha vida normal.

Conto escrito para o concurso Prosa & Verso - Contos do Rio (Infoglobo).

sábado, 3 de julho de 2010

Documentário: Dignidade: eu vivo esse sonho (Kalunga) Riachão-GO

Natalino Castro "Catú" (E) e Manoel Castro (D)

Através de relatos, os Kalungas (remanescentes de escravos), narram a história de um povo que viveu isolado por centenas de anos ao Norte de Goiás.
Há de se destacar a riqueza cultural, sobretudo, os costumes de um povo hospitaleiro; onde se vê presente, fortemente, os laços comunitários, se não, familiares.


Trecho da fala de Catú:

"Eu já carreguei gente doente nas costas. Era um dia e meio, quase dois, até a cidade. Quando a gente voltava, adoecia três. Então, voltava pra trás com esse povo na cacunda."



Documentário - Dignidade: eu vivo esse sonho - A chegada do desenvolvimento na comunidade Kalunga Riachão.
Roteiro e Direção: Dídimon Guedes e Orlando Campos
Cinegrafista: Tyrone Vmaker

Trecho: Bartleby e Companhia (Enrique Vila-Matas)

Acabei refugiando-me no que primeiro me veio à cabeça, umas frases do escritor argentino Fogwill: “escrevo para não ser escrito. Vivi por muitos anos, representava uma narrativa. Suponho que escrevo para escrever outros, para agir sobre a imaginação, a revelação, o conhecimento dos outros. Talvez sobre o comportamento literário dos outros”.

Depois de me apropriar das palavras de Fogwill – afinal de contas, nestas notas a um texto invisível, eu também me dedico a comentar os comportamentos literários de outros para assim poder escrever e não ser escrito -, apago as luzes da sala, dirijo-me ao corredor tropeçando nos móveis, digo a mim mesmo que não falta muito para que eu durma por escrito.

Bartleby e Companhia: Enrique Vila-Matas.

São Paulo: Cosac Naify, 2004.

Página 106.

Trecho: O mal de Montano (Enrique Vila-Matas)

Eu creio ver agora mesmo que quem é capaz de olhar dessa maneira não está demasiado aferrado à materialidade da vida e é um fantasma ambulante. Rosario Girondo, por exemplo – eu, não minha mãe -, é também um fantasma ambulante, passeia por estas páginas tramando aprender a saber ler os demais, tratando de estar fora de si e olhar, porque aspira a olhar algum dia como olhava Soares a ler como lia Pessoa, que nunca leu um livro entregando-se a ele – salvo se fosse de Soares -, porque sempre, a cada passo, a memória – como me ocorreu lendo Michaux – interrompia-lhe a sequencia narrativa: “Depois de alguns minutos, quem escrevia era eu, e o que estava escrito não estava em nenhuma parte”. Uma elegante forma de dizer que seu Eu fazia seu o que estava fora dele. É o que trata de imitar meu Eu faz um tempo. Janela não me fala.

O mal de Montano: Enrique Vila-Matas.

São Paulo: Cosac Naify, 2005.

Página 186.

Trecho: Doutor Pasavento (Enrique Vila-Matas)

O doutor Ingravallo acaba de me lembrar que, apesar dos dias transcorridos, ninguém ainda se deu conta do meu desaparecimento. “É mais dramático do que você imagina”, ele me disse com evidente disposição de solapar meu moral e quem sabe movido pela ideia de interromper a evocação da minha segunda visita a Herisau. Quem sabe. Talvez suas palavras tenham obedecido simplesmente a uma impulso de raiva ao me ver tão feliz aqui ultimamente e recuperado minha tranqüilidade que havia perdido em meus tempos de escritor engolido pelo mundo da vaidade e da fama.

Doutor Pasavento: Enrique Vila-Matas.

São Paulo: Cosac Naify, 2009.

Páginas: 287 e 288.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Conto: Maldita, velha, árvore...

Praticamente todos sabiam que atitude tomar. Aquela árvore teria que ser cortada. Sua forma convidativa – os galhos quase arrastando ao chão – era fruto de discórdia entre os moradores. Não havia quem se aproximasse dela e não danasse a fofocar da vida alheia. Ela sempre estivera ali (antes de qualquer moradia). Não foi respeitada, em lágrimas, derrubaram-na ao chão.




Só que os moradores não encontraram a paz esperada. Culparam a dona da banca de jornal: “é ela quem espalha essas sementes odiosas pelo bairro.”, gritavam em coro.




Ela não teve tempo, nem argumento em sua defesa. Sem conseguir movimentar uma folha, expulsaram-na do bairro.




Ninguém a respeitou. Não por ser uma senhora de idade, mas por ser a moradora mais antiga dali. Prometera voltar um dia.




Ela voltou. E assim, velaram-na em plena raiz. Renascida em homenagem ao chão. Carregada pelo tronco ornamentado de seu caixão.






Escrito para o concurso Cassiano Nunes (UNB).

Conto: O peso e a posição

Encontraram-na deitada no chão da sala. O perfume que saia dela dava para sentir do outro lado da rua; os moradores questionaram-se do tal cheiro, talvez viesse de alguma planta aromática, só que todas as plantas estavam mortas: as do quintal e uma samambaia seca no canto da sala.



Porém, ninguém imaginou que aquela fragrância agradável, mas perturbadora, e devido sua constante essência, e espalhada pela rua, e roubando toda a pureza do ar, viesse daquela velha. Era assim que ela era tida por todos, aliás, mal vista por todos no bairro. Ninguém soubera explicar a antipatia, tinham porque era assim que deveriam agir com ela, e assim agiam.



A senhora tinha uma banca de jornal na Praça da Árvore Deitada. Deitada porque seus galhos, velhos e fortes, eram tortos, beirando ao chão. A árvore solitária, estava sempre pronta para descansar do peso de todos os corpos que ali parassem para aproveitar de sua sombra no jogo de cartas, nas damas ou na hora de jogar um papo fora; haja ouvidos!



A árvore no final da tarde sombreava a banca de jornal BláBláBlá. Todos riam do nome e não deixavam por barato, ao dizer que a dona se tratava de uma fofoqueira. Ela dizia para quem quisesse ouvir que vendia informações – a de seus jornais – e nada mais “Não deixava de ser verdade.”. Outros comentavam que ela fazia mais que isso: “é uma mexeriqueira!”, dizia as mulheres, revoltadas com ela; haja ouvidos!



Ela se foi e a árvore permaneceu.



A ira do povo não parava por aí. Acusavam-na, também, de ser uma velha egoísta e rabugenta: "não era capaz de vender fiado aos amigos", dizia um. Só que ela não tinha amigos, não que os não quisessem, mas não os tinham, pois se os tivessem, venderia de bom grado.



Ninguém a entendia ou não queria entendê-la em sua solidão. Apenas julgavam-na como uma pessoa má: "nunca foi capaz de me dar um copo com água", comentava outro. Se pedisse ao invés de comprar, teria dado.



A casa e a banca ficaram fechadas por todo esse tempo. Ninguém apareceu para se apossar dos bens.



Para uns, morte estranha; para outros, alívio; para todos, estranheza ao sentir a presença dela por mais de um ano após o enterro.



Ela simplesmente partiu e deixou esse mistério no ar, porque não suportou o peso de todas as línguas que mal dela falaram.





Conto escrito para o concurso Gato Sabido (Ficções Editora).