segunda-feira, 5 de julho de 2010

Conto: Os sinais que me levam até você

Nuvem sobre o Largo da Carioca - Márcia Foletto




É final de tarde. Faz frio. Não consigo parar de bocejar. A chuva forte varre tudo o que encontrar pela frente. Cobre os meus pés. Não tenho nem coragem para lavá-los. Procuro abrigo embaixo de uma marquise. De repente, a dona da banca de jornal enfrenta a tempestade sem nenhuma proteção “ela é louca?!” – e olha fixamente para mim. Volta-se para o céu. Imensos pingos cobrem-lhe a visão. Completamente ensopada, a mulher volta a me olhar e, de súbito, entra na banca sem falar nada.


Ela me olhou como se me culpasse de algo – “era só o que me faltava.” – não bastasse o preconceito de todos os dias, e agora, mais essa. Meu pai sempre dizia: “quem tem sempre acha que está sendo roubado.”.



Faça chuva ou faça sol, não tem um dia que Dona Zefa não pare no meio da praça e olhe para o céu. Como num ritual, ela tira do jaleco um papel todo amassado. Não consigo ver o que é. Ela o aproxima do rosto e chora. Volta a olhar para cima; parece desolada por não encontrar nada – e sabe-se lá o que ela deseja encontrar. Agora ela olha para o chão. Cabisbaixa, volta para dentro da banca, antes, porém, me procura; fica alguns segundos e não diz nada. Quer falar alguma coisa, mas se cala.



“Que diabos ela quer comigo?”



Tenho curiosidade em saber o que ela queria me falar, mas confesso, temo o rigor de suas palavras. Só quem já as ouviu, sabem o quanto são pesadas. Dizem até que ela é filha de ciganos. Eu não acredito nessas coisas, mas, se ela é capaz de ler o passado e revelar os acontecimentos futuros, eu é que não vou arriscar “o povo fala demais, fala por falar.”.



Tristes dias, esses, aqui na Carioca. Não tem mais ninguém para compartilhar a alegria dantes vivida por todos. Não ficou ninguém. Eu permaneci por pirraça. Não poderia largar; aqui é o meu lugar... minhas avenidas, becos e a praça. Aqui não tem mais emprego “triste realidade do país”. Tiraram-nos tudo. A alegria dos camelôs e dos artistas. Dos muitos que fizeram daqui palco, lugar de reivindicações, muito trabalho e amor.



Não sou desempregado, não! Pensa que fui mendigo da vida toda? Estão enganados. Sempre trabalhei, claro, onde havia emprego. Mas eu gostava mesmo era de fazer um bico. Sou mestre no assunto. Varrer, carregar, lavar. A arte de prosear, mas não para jogar conversa fora, e sim, a arte de escrever, principalmente poemas. Só que me abandonei na Carioca, pois sabia que ela nunca iria me abandonar. Larguei toda aquela vida e ficaram apenas lembranças “Saudades de Anselmo e Darlene”. A separação. A cólera que entorpeceu a minha alma, fazendo-me incorporar essa nova vida.



Não acredito! Lá vem aquela velha novamente. Meu saco! Mal amanhece e ela faz tudo de novo. O que ela quer afinal. Vou para o outro lado da praça. Assim ela não me acha. Evito ao máximo aquele olhar de cobra em cima de mim. Lascou! Não é que ela me encontrou. Mesmo aqui atrás da árvore deitada. Parece até que ela tem olhos na nuca. Tô começando a achar que ela é uma bruxa. Cruz em Credo!



Uma imensa nuvem se forma entre os prédios. Nunca vi uma coisa assim. De tão baixa, parece que imensas mãos se agarram entre as paredes. Todos estão hipnotizados com aquela imagem, inclusive Dona Zefa. Parece até que se comunicam. A cada movimento da velha a nuvem se movimenta em sincronia.



Ao tirar o mesmo papel do bolso, deixa-o cair no chão. Ao olhar para o chão, pensei que ela fosse pegá-lo, só que ela começa a caminhar. Segue o desenho das pedras, como se as ondulações performáticas a conduzissem a algum lugar. Meu instinto pede para segui-la. Mas antes, pego o papel no chão. É uma foto antiga – P&B – nela está uma jovem. No verso, está escrito:




A nuvem que me leva à rua


Não mostra nada


Sigo apenas as ondas na calçada


Deixo-me levar


Por entre às águas... até me calar no mar.... Glorinha.





A foto foi tirada de cima para baixo. A posição era de algum desses prédios e a moça, estava plantada na mesma posição na qual me encontro. Procuro o prédio de onde havia sido registrada. Me distrai com aquilo e perdi de vista Dona Zefa.



Dá para ver, apenas o rastro da nuvem, em espiral, se dissipando no ar. Tenho a crença de que se a seguir, a encontrarei. Só consegui avistá-la próximo ao Convento de Santo Antônio. Ao me aproximar dela, percebi que estava de joelhos escavando o chão com as mãos. Ela sentiu a minha presença. Por um instante, quis parar, mas prosseguiu, enfiando com toda a força as unhas na terra. Não tive coragem de impedi-la; falar com ela, menos ainda. A única coisa que pensei e foi feita ao jogar a foto no pequeno buraco escavado em sua frente a interrompeu por um instante. Dona Zefa apanhou a foto contemplada por uma alegria vertiginosa. Olhou novamente para o céu. Acenou para a nuvem em despedida. Virou para mim com os olhos cheios de lágrimas e pela primeira vez, me dirigiu a palavra. O pouco que disse foi o agradecimento por tê-la ajudado a encontrar sua filha. No mais, eu a agradeci por me conceder a oportunidade de ser o narrador dessa historia. Agora posso voltar a minha vida normal.

Conto escrito para o concurso Prosa & Verso - Contos do Rio (Infoglobo).

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